Divagacoes tupiniquins em Buenos Aires.

Monday, December 13, 2004

Reconquista

Como disse antes, demorei bastante para me sentir em Buenos Aires. Isso já aconteceu comigo em outros lugares, mas aqui a sensacao de desencontro foi muito mais forte e estranha.

Para começar, esta cidade é um labirinto de referências. Caminho pela Calle Florida, um calcadao de comércio no centro da cidade, e me imagino na Rua XV de Novembro em Sao Paulo. Espio adentro de um restaurante e vejo dezenas de jámons, aqueles presuntos espanhóis deliciosos, pendurados na parede. Olho para uma banca de jornal, e o Pedro Almodóvar me encara numa capa de revista. O nome da revista, Les Inrockuptibles, uma piada em francês.

Termina o calçadao de comércio e entro numa larga avenida. Em ambos os lados, calçadas amplas e arborizadas. Em cada esquina, um café parisiense espalhava suas mesas e cadeiras pelo passeio público. Chego a um cruzamento movimentado e vejo três ou quatro garotos fazendo malabarismo entre os carros. Bolinhas coloridas voadoras que me dao uma estranha sensacao de estar em casa. Um obelisco corta o horizonte. Já vi isso em outro(s) lugar(es)? Ao final da grande praça, um relogio inglês. Também nao deixe de visitar a igreja russa, claro. Nem pense em nao ir a San Telmo, o bairro dos imigrantes espanhóis e italianos que chegaram no início do outro século.

Tanta coisa diversa, tanta coisa já vista. Tudo, aos poucos, reforçando a estranheza inicial e ampliando a impressao do surreal. E trazendo a mente um inevitável clichê: a sensaçao de estar em todos os lugares ao mesmo tempo e, ainda assim, nao estar em nenhum deles.

***

Buenos Aires já possui todos os símbolos globalizantes que poluem a personalidade singular de uma cidade. Além das dezenas de trade-marks globais (McDonald´s, Coca-Cola, Shell e outras tantas), agora ainda os automóveis me parecem todos vulgarmente familiares. É claro, isso nao é um fenomeno especifico de Buenos Aires. Noventa por cento das cidades do mundo passam pelo mesmo. Para temor dos agentes turisticos, aumentam a cada dia as coisas que sao iguais em qualquer lugar no mundo.

No entanto, a coisa aqui é diferente. Da mesma maneira que Sao Paulo ou Rio de Janeiro, a confusao multinacional de Buenos Aires já é antiga. Somos todos do Novo Mundo, afinal. Nossas influencias vem do além-mar já há séculos, somos calejados de globalizaçao.

As metrópoles brasileiras, entretanto, servem apenas de referência inicial. Diferentemente da nossa tropicaliente Antropofagia, os portenhos lidaram com sua diversidade de outra maneira. Se o ecletismo brasileiro deu origem ao samba, ao carnaval, ao nosso variado folclore, e mais tarde à bossa-nova, na Argentina a mistura de influencias resultou principalmente no Tango e na cultura criolla dos pampas.

Ao mesmo tempo, tudo em Buenos Aires é monumental, grandioso. É como se a influência de cada cultura européia tenha sido marcada por atos mais ousados e ambiciosos. Os palácios, as praças, os casaroes, percebe-se que tudo foi feito sem pudor ou discriçao. Muito pelo contrário, tudo parece ter sido orgulhosamente feito para ser percebido, notado, deleitado, comemorado. Por consequencia, cada uma dessas marcas especificas ainda está preservada e presente.

Diferentemente do Brasil, também é preciso dizer que neste caldeirao cultural portenho, nao entraram os ingredientes africanos. Mas, apesar de menos diverso, o caldo nao saiu tao homogeneo. É como se o caldeirao nao tenha sido bem mexido. Em Buenos Aires tenho a sensacao que os ingredientes ainda se destacam mais do que o prato final.

É isso. Talvez seja difícil, no meio de tantos ingredientes, todos eles com um paladar marcante e saboroso, reter na mente qual é afinal o gosto, integral e particular, deste prato raro.

***

Talvez ter viajado para cá sem saber muito a respeito de Buenos Aires também tenha dificultado a sensaçao de "reconhecimento". Na verdade, minhas referencias resumiam-se ao trio "tango, chorizo e Perón".

Aos poucos, no entanto, vou me encontrando. No meio de todas as marcas da globalizacao, já dá gosto ler a tipografia da cerveja Quilmes estampada nos outdoors, assim como poder ver as centenas de Pegeouts anos setenta amplamente usados nas frotas de taxi.

Como remédio, tenho tentado aos poucos mergulhar nas minhas rasas referencias. Tenho procurado descobrir o tango, nas ruas e no disc-man. Estou lendo um romance que se passa aqui em Buenos Aires. Li um conto de Borges pela primeira vez, e caí para trás. Ainda vou comprar também algo do Cortázar.

Minhas andancas também ajudam. Pouco a pouco vou formando a imagem, a minha imagem, disto aqui. Aos poucos, também parece inevitável envolver-se com o patriotismo apaixonado que os argentinos tem pelo próprio país. O que ainda me intriga é que toda essa paixao tem que, necessariamente, ser causa e consequencia de uma identidade forte. Uma identidade tao forte que eu ainda estou lutando para decifrá-la.

Nem sempre é fácil conquistar uma cidade. Talvez eu já tivesse me esquecido disso.

P.S.: Este texto foi escrito uns 10 dias atrás.

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